Kamala Harris: A força de uma vice

Fonte: Revista Poder: https://revistapoder.uol.com.br/edicoes/edicao-141/kamala-harris-a-forca-de-uma-vice/
Por Paulo Vieira
Uma é no cravo, a outra na ferradura. Ou melhor: uma é na cabeça, a outra também, e depois a terceira, a quarta, a quinta, a sexta, até o elemento deixar de respirar. A morte brutal por espancamento do cidadão negro Beto Freitas, num Carrefour de Porto Alegre às vésperas do Dia da Consciência Negra, em novembro, mostrou ao mundo que o Brasil também pode ter seus George Floyd – na verdade, o país sempre teve inúmeros George Floyd, mas nem todos os holocaustos negros são capazes de sensibilizar cidades inteiras, como aconteceu nos Estados Unidos em 2020. Que o digam as crianças Ágatha, João Pedro, Kauê, Kauan – há mais, escolha a sua.
O racismo estrutural brasileiro, a despeito dos muitos negacionistas de plantão, tampouco permitiu que o Palácio da Alvorada hospedasse algum presidente negro. Nem mesmo o Jaburu teve como inquilino um vice-presidente negro. Nisso estamos outra vez atrás dos Estados Unidos, que vê agora em janeiro chegar ao poder a chapa Joe Biden e Kamala Harris. Se Biden veste bem o figurino do macho adulto branco sempre no comando de que fala Caetano Veloso na música “O Estrangeiro”, Kamala é a primeira vice-presidente americana negra e ainda filha de pais imigrantes.
É consensual entre especialistas que a força simbólica da vitória de Kamala é grande, mas terá ela mais importância do que a própria eleição de Obama à Presidência em 2008? Para José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, os dois eventos têm a mesma “potência”, mas a agenda racial, que emergiu dramaticamente em 2020 com o assassinato de George Floyd, pode dar mais força a esse tema no próximo governo democrata. “[Joe] Biden foi obrigado a fazer um pacto formalizado e publicizado com os negros, algo que nem Obama fez. Ele assume com uma agenda [racial] instaurada”, disse por telefone a PODER.

José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares ||Crédito: Roberto Setton
Já para Petrônio Domingues, professor da Universidade Federal de Sergipe e autor do livro recém-lançado Protagonismo Negro em São Paulo, a vitória de Kamala tem “representatividade”, e isso pelo simples fato de ela ser a primeira mulher negra a ocupar o cargo de vice-presidente nos Estados Unidos. “A representatividade é um fator importante na construção e na afirmação da identidade negra, servindo de fonte de inspiração para todo esse segmento populacional”, diz. Mas, diferentemente de José Vicente, para Domingues não é possível ver na vitória de Kamala a força simbólica do triunfo de Obama, dada a disparidade dos cargos. Ele lembra, no entanto, que a idade avançada de Biden – 82 anos em 2024, quando o novo presidente poderá concorrer à reeleição – poderá colocar Kamala em condições de pleitear a cabeça de chapa democrata. “Não estranharia se ela se credenciasse como potencial sucessora de Joe Biden. É muito cedo para esse tipo de prognóstico, mas Kamala é uma política emergente, de grande carisma, com perspectivas de alçar voos mais altos.”
Organizador do livro Movimento Negro Unificado, José Adão de Oliveira é bastante mais cético com a ascensão de Kamala. Para ele, discussões capitais do movimento negro, como a das reparações às famílias descendentes de antepassados escravizados, saem de cena quando negros “juram a Constituição e a bandeira americanas”. “Obama retomou o diálogo com o movimento negro, mas ao jurar obedecer as regras [do jogo democrático], ele se tornou um homem do poder, não era então mais negro. Com Kamala vai ser a mesma coisa, ela irá jurar obedecer à Constituição, como deve ser, e aí vai deixar de ser a Kamala que conhecemos.”
Kamala Harris || Crédito: Getty Images